Por
Altemar Di Monteiro
Sem
forma revolucionária não haveria arte revolucionária, afirmava Maiakóvski. A
partir dessa ideia, o trabalho do Nóis de Teatro tem se configurado como uma
investigação estética onde passamos a observar a rua e o espaço
geográfico/arquitetônico das favelas como locais de encenação, espaços
poéticos, alimentados pelo “suor humano da argamassa do seu calçamento”. Nossa
produção estética busca mostrar, de forma poética, as ruas e os sujeitos
oprimidos dessa cidade, revelando a urbes que não é contada nos folhetins de
propagandas turísticas, contribuindo para a desconstrução de preconceitos e
amarras em relação ao que vem das “favelas”, do local de onde atuamos. O atual
repertório do grupo, composto por “Despejadas", "Ainda Vivas" e
“Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro” são exemplo disso, trazendo
fortes reflexões sobre violência urbana, conflito de classes na cidade e no
campo, intolerância e preconceito, tendo como pano de fundo as experiências do
grupo nas periferias.
Como
produzir uma arte desvinculada de uma realidade de massacre cultural e
violência onde se está inserido? A pesquisa poética do Nóis cada vez mais se
fortalece numa noção dialética, no desejo da produção de uma arte desvinculada
de um projeto estético dominante, questionando-o e refletindo sobre seus
ditames formais. É a busca por contradições, o louvor à crise, o “incêndio da
obra”, o despedaçamento, a sublime violência do verdadeiro. Sem pregar “a
verdade”, na difícil tentativa de fugir do discurso panfletário, mas apresentando
as contradições das verdades, defendemos um teatro que coloca as informações em
crise, dada a quase impossibilidade de desconectá-la dos contextos históricos e
culturais em que se inserem.
Todo
Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro surge nesse contexto de aprofundamento
da pesquisa do grupo. Vencedor do Prêmio FUNARTE de Arte Negra, o Nóis passou
por um ano visitando comunidades quilombolas, terreiros de umbanda e candomblé,
dialogando com movimentos sociais e refletindo sobre os atuais dados que
criminalizam e dizimam a juventude negra nas periferias. O texto, escrito num
processo de Dramaturgismo por Altemar Di Monteiro, sugere uma imersão dialética
na vida de um personagem complexo, cheio de contradições e difícil de se chegar
a um julgamento claro. Natanael, no primeiro ato, é apresentado como um
oprimido, perseguido, com uma infância marcada pelo preconceito e intolerância,
sem acesso às necessidades básicas. No segundo ato, sem perspectivas, Natanael
entra pra polícia militar, onde é corrompido e transformado num homem
truculento, chegando a matar a queima roupa um outro jovem numa manifestação.
No terceiro ato o público é convocado a discutir a situação do nosso
personagem. Num tribunal aberto, sob os argumentos de um advogado de defesa e um
de acusação a plateia tem a incumbência de decidir o seu futuro.
A
montagem passa por um crivo de tragédia épica, onde os atores narradores
possuem uma função muito importante, guiando o olhar do espectador rumo a um
distanciamento, possibilitando a reflexão sobre os fatos apresentados. Não
tínhamos como fugir do grande referencial de matriz negra das periferias,
então, o funk, o hip hop e a capoeira embalam as canções e propostas de cenas,
que são costuradas pelo fio condutor de referenciais da umbanda e do candomblé.
O espetáculo possui 07 cenas, um prologo e um epílogo, onde em cada cena, são
utilizadas múltiplas referências da mitologia dos orixás africanos. A história
de Natanael é inspirada em vários mitos dos Orixás, que surgem ao olhar de um
espectador especializado em grande referência, mas que para um espectador leigo
revela-se em beleza e força. A tragédia é colocada em cena como um recurso de
estetização do discurso, apresentando múltiplas alegorias para representar
realidades. Desde o nascimento do menino Natanael numa orgia que pede “agô” a
Exu, até a sua redenção no encontro com Oxalá, o espetáculo guia-se em torno do
referencial de matriz africana, militando, inclusive, contra a intolerância
religiosa, mostrando a beleza dos cultos afro.
Como
não cair na imagem da comunidade de periferia estereotipada pela grande mídia
sem entender a sua singularidade poética, códigos de conduta e sociabilidade,
reflexo de um universo cultural amplo? Falar de arte política, dentro das
periferias da cidade, é vincular tal projeto artístico à sua própria
conjuntura, e a ideia de dialética apresentasse para Nóis, como a construção de
diálogos e ambiguidades, o espaço de transição entre polos, a dúvida propulsora
do debate. É a incerteza do que pode ser, do que será e do que é, mas é também
a certeza de que o que está posto é sim mutável. A partir daí, numa via
negativa, buscamos a produção do confronto, da tensão, do incômodo necessário
para a transgressão e mobilização da transformação, rumo ao tão sonhado despertar.
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