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[CRÍTICA DA CRÍTICA] DESCONFIE DE TUDO O QUE LHE PARECE NATURAL

Posted by Nóis de Teatro On 20:14 No comments

Foto: Tentalize


"Descubram o que há de estranho No que parece normal. Vejam o que há de anormal No que parece explicado, Vejam quanto não se explica! E o que parece comum Vejam como é de espantar! Na regra vejam o abuso! E, onde o abuso apontar, Procurem remediar!"
Bertolt Brecht

Foram publicados na última sexta, dia 02, no site Farofa Crítica, dois textos sobre o espetáculo “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, sendo um deles de George Holanda e o outro de Diogo Spinelli [para conferir clique aqui]. Em tempos da proliferação de modos de falar, de escrever, de testemunhar, de experienciar e de viver as artes, cada vez mais tem urgido a necessidade de gerar espaços de debate. A crítica da crítica, em territórios de disputa simbólica e do saber, tem se tornado cada vez mais um modelo possível de abrir o pensamento para diálogos, debates que inflamam campos de tensão que podem movimentar de forma séria e comprometida o modo como temos feito teatro no Brasil.

O texto que segue busca refletir sobre os pontos levantados pelos autores. Não para contradizê-los ou rebatê-los – o que só serviria para gerar polêmicas inúteis e, consequentemente, fechar para a escuta ao que os autores levantam relevantemente como pontos de discussão – mas para abrir o debate e apontar conexões outras que vem sendo tecidas ao longo de três anos de temporada do espetáculo. Como dramaturgista e assistente de direção do espetáculo, provoco-me a mediar algumas questões e abrir uma escrita que, atravessada pelos pontos elencados por George e Diogo, desdobra o mapa conectivo que se desenha a partir da cena gerada pelos artistas do Nóis de Teatro, grupo que faço parte desde a sua fundação.

George reconhece que a palavra é elemento primordial em Todo Camburão, colocando-a também como obstáculo para o sucesso da “missão de denunciar, em seus vários aspectos, a violência contra o negro”. Buscando tensionar o discurso poético do espetáculo em paralelo à sua força cênica, o autor diz que seria necessário “crescer com o uso de todas as suas armas, dentre as quais está o expediente cênico”. Ora, desde o começo do texto, na explanação apresentada, fica-nos pouco claro o que o autor deseja chamar de “expediente cênico”. Seria a ação performática engenhada pela encenação? Seria a ação corporal dos atores em contraste ao discurso proferido por suas vozes? O que de fato, no teatro contemporâneo, seria o expediente cênico? O espetáculo? O show?

Muitos foram os que tentaram, sem sucesso, demarcar qual é a verve da poética teatral. Criando tensionamentos simbólicos e epistemológicos, vivemos, desde os anos 1970, uma crise da linguagem cênica que se dá, sobretudo, pelo embate estabelecido entre arte e política, entre a objetividade do discurso político-panfletário e as subjetividades tramadas pelo “objeto de arte”. Das poéticas do teatro físico às peripécias do Teatro Épico-Dialético, uma guerra se faz no teatro branco ocidental. Tal crise só nos revela um campo de tensão pouco resolvido, mas que, pelo menos, mostra a visão de mundo e de arte dos lados que compõem essa trincheira. Inseridos num mundo altamente espetacularizado, onde se coloca a singularidade do teatro? Que outros modos de fazer teatro são possível para além da virtuose cênica empreendida pelo mundo do sucesso? Nesse bololô pouco propositivo, a pergunta que fica é: como a palavra pode ser utilizada no teatro contemporâneo como potência cênica? Seriam os discursos de mundo, colocados em pauta na cena, matéria para composição dramatúrgica?

A dramaturgia de “Todo Camburão” – tecida a partir de histórias vividas pelos artistas negros, por manifestos do Movimento Negro no mundo, por dados jornalísticos e campanhas publicitárias, por documentos resgatados na historiografia da escravidão ¬– coloca em paralelo um arsenal de discursos na busca de tensionar esses lugares de fala e suas visões de mundo: dados que compõem o real de um mundo tramado, nas suas vias mais intersubjetivas, por uma lógica racista, escravagista e hipócrita. A busca que se empreende é a de revisitar esses materiais para, em cena, desdobrar as conexões com o que antes não se fazia tão aparente e questionar de onde partem tais contradições: elas revelam perceptos do opressor ou manifestos do oprimido? Nesse sentido, optar pelo uso da palavra, como bem aponta o texto de George, é assumir a potência da articulação de discursos na construção de uma obra de arte. Acontece que, além de buscar tensionar esses discursos, “Todo Camburão” desconfia sinuosamente da veracidade de qualquer discurso de verdade e, como bem lembra Diogo ao falar da potência do teatro dialético, assumimos que “é preciso duvidar do óbvio e questionar o que parece estar naturalizado”. A potência de uma cena que busca descolonizar o olhar e a escuta vai para além do que se deu historicamente como realidade oficial – e nisso se inclui o que se intui precipitadamente de uma poética periférica e negra – para reconhecer na oralidade a insurgência de uma voz que opera por dissenso. Contra o documento oficial, emerge de forma estratégica a voz de um povo que foi calado por séculos. É por isso mesmo que a oralidade dos povos africanos tanto nos tem ensinado sobre a potência dos relatos de vida, das histórias não contadas, das falas que não foram ouvidas.

Em um processo onde os atores colocam em pauta sua própria experiência como negros periféricos, suburbanos, é na palavra que se engenha a potência da articulação de outros discursos, para além dos que se fazem manobrados pelos interesses de um mundo completamente branco e higienizado. É por isso que se faz certeira uma crítica que anuncia a diferença entre os atos da peça, reconhecendo que os efeitos narrativos do primeiro e do segundo ato são colocados de lado quanto adentramos ao terceiro. E isso se dá de modo estratégico. Ao apresentar Natanael, o nosso anti-herói, personagem que percorre as ruas do cotidiano do nosso bairro, das nossas famílias, das nossas vidas, não há como ceder facilmente ao fetiche da representação. O que conta como potência performativa é exatamente a fala que circunda e anuncia toda uma história que não circula na História oficial. De oprimido a opressor, Natanael é qualquer um de nós, por isso a necessidade de um rigor na palavra enunciada, no texto proferido, na voz abafada que percorre essa trama. Na busca por complexificar esse arranjo, surge a denúncia sobre o próprio discurso. Após apresentar uma tese e uma antítese, o espetáculo se pergunta: É possível construir uma síntese? As informações do primeiro e segundo ato são tecidas de modo objetivo e direcionado. Há aí uma busca por levar ao espectador, de modo radical (por vezes didáticos), os vetores que constituem Natanael como oprimido e como opressor. Tal efeito é elaborado para desaguar no terceiro ato: aquele que se estabelece sem informações claras ou narração direcionada. O desafio que fica para o espectador se escancara: Como operar com as informações recebidas anteriormente de modo tão direto quando adentramos em um tribunal composto por sujeitos com interesses altamente obscuros? Num mundo atomizado por discursos de verdade proferidos por todos os cantos, é possível descortinar a complexidade dos discursos proferidos no primeiro e no segundo ato apenas com a chancela de “culpado” e “inocente”? Não há síntese dos discursos em Todo Camburão. E o espectador é convidado a partilhar desse debate, colocando em jogo sua ação e visão de mundo. A urgência que surge ao final da cena é a complexificação dessa trama e dos desdobramentos como campo de ação possível no presente.

É nesse momento que a dobra conceitual do espetáculo se faz a mostra. E se Todo Camburão tem uma “missão”, talvez seja exatamente essa: denunciar o discurso de verdade a que estamos entregues no mundo contemporâneo. No campo do real, aquele que se tece a partir de nossas próprias histórias, assumimos uma performance carregada de efeito narrativo. No campo da ficção da verdade (o tribunal), a narração não tem mais efeito algum, o que se manifesta é apenas o simulacro. Num tribunal composto por diversos personagens tramados por interesses ocultos, a farsa se apresenta como recurso de linguagem com efeitos performativos que denunciam o malogro, o falso, o irreal que constitui tanto o sistema judiciário brasileiro, quanto um pensamento precipitado que cai na superficialidade dos dados e não desconfia do que antes lhe soava como natural. A espetacularização da verdade, o louvor ao fake e à “pós-verdade”, tão presente nas tramas do nosso cotidiano, são levadas à cena como denúncia visível. Tal alerta que se faz é sobre a fraude da síntese e, para isso, todos os discursos saem da narração para assumir a força performativa da retórica, do convencimento pelo grito, da guerra maniqueísta estabelecida entre os jogos de poder de todos os atores que constituem a farsa da justiça: “bastarda, vendida, injusta”. Junto com uma performance que se alia às próprias realidades de vida dos atores, Todo Camburão denuncia justamente a falência da representação e da institucionalidade.

Nesse sentido, os efeitos preconizados pelo teatro épico-dialético brechtiano (não esqueçamos da referência constante à “Exceção e a Regra”, de Brecht), além das potências do Teatro-Jornal boaliano, o espetáculo assume a potência do mostrar, operando pela potência dos lugares de fala, não para criar um território vazio de empoderamento midiático, mas para apresentar narrativas que até então estiveram escondidas nos escombros de uma história tramada por interesses obscuros. Tais narrativas, é importante mencionar, não estão entregues por completo. Um mundo construído por uma subjetividade branca que arroga já conhecer tudo pode perder facilmente de vista a possibilidade de se conectar a outros mundos. Acreditar que, na cena, tudo já foi entregue e que as conexões possíveis que o espetador irá fazer já estão desenhadas é não fazer outra coisa que subestimar a subjetividade poética e criativa da cena negra contemporânea. Sim: desconfie de tudo o que lhe parece natural.

Além dos objetos aparentes tramados no discurso, há diversas outras referências que operam por permeabilidade, por vicejos poéticos que acessam o campo do sensível. Seja a referência direta à mitologia dos Orixás, à Gira da Umbanda – que começa pedindo permissão à Exu e finaliza saudando Oxalá – ou mesmo à história de mártires do movimento negro, há conexões possíveis de serem rastreadas para além do que é proferido no discurso falado, aquele que parece possivelmente entregue de modo óbvio. A dimensão da experiência se dá a partir de um mapa conectivo que se estabelece a partir do repertório de visões de mundo do espectador. E nesse sentido, para sairmos do que já sondamos como conexão de expediente cênico, a escuta é urgente, coisa que a epistemologia branca pouco tem feito no mundo atual.

Por Altemar Di Monteiro
Ator, Diretor, Dramaturgista, coordenador do Nóis de Teatro. Doutorando em Arte da Cena pela UFMG.

SERVIÇO
Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro” segue em temporada pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura em São Luis e Teresina a partir de julho; e, ainda esse ano, realizará temporada em Belo Horizonte e São Paulo.

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