Foto: Tentalize
"Descubram o que há de estranho No que parece normal. Vejam o que há de anormal No que parece explicado, Vejam quanto não se explica! E o que parece comum Vejam como é de espantar! Na regra vejam o abuso! E, onde o abuso apontar, Procurem remediar!"
Bertolt Brecht
Foram
publicados na última sexta, dia 02, no site Farofa Crítica, dois textos sobre o
espetáculo “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, sendo um deles de
George Holanda e o outro de Diogo Spinelli [para conferir clique aqui]. Em
tempos da proliferação de modos de falar, de escrever, de testemunhar, de
experienciar e de viver as artes, cada vez mais tem urgido a necessidade de gerar espaços de debate. A crítica da crítica, em territórios de disputa simbólica e do
saber, tem se tornado cada vez mais um modelo possível de abrir o pensamento
para diálogos, debates que inflamam campos de tensão que podem movimentar de
forma séria e comprometida o modo como temos feito teatro no Brasil.
O
texto que segue busca refletir sobre os pontos levantados pelos autores. Não
para contradizê-los ou rebatê-los – o que só serviria para gerar polêmicas
inúteis e, consequentemente, fechar para a escuta ao que os autores levantam
relevantemente como pontos de discussão – mas para abrir o debate e apontar
conexões outras que vem sendo tecidas ao longo de três anos de temporada do
espetáculo. Como dramaturgista e assistente de direção do espetáculo,
provoco-me a mediar algumas questões e abrir uma escrita que, atravessada pelos
pontos elencados por George e Diogo, desdobra o mapa conectivo que se desenha a
partir da cena gerada pelos artistas do Nóis de Teatro, grupo que faço parte
desde a sua fundação.
George
reconhece que a palavra é elemento primordial em Todo Camburão, colocando-a
também como obstáculo para o sucesso da “missão de denunciar, em seus vários
aspectos, a violência contra o negro”. Buscando tensionar o discurso poético do
espetáculo em paralelo à sua força cênica, o autor diz que seria
necessário “crescer com o uso de todas as suas armas, dentre as quais está o
expediente cênico”. Ora, desde o começo do texto, na explanação apresentada,
fica-nos pouco claro o que o autor deseja chamar de “expediente cênico”. Seria
a ação performática engenhada pela encenação? Seria a ação corporal dos atores
em contraste ao discurso proferido por suas vozes? O que de fato, no teatro
contemporâneo, seria o expediente cênico? O espetáculo? O show?
Muitos
foram os que tentaram, sem sucesso, demarcar qual é a verve da poética teatral.
Criando tensionamentos simbólicos e epistemológicos, vivemos, desde os anos
1970, uma crise da linguagem cênica que se dá, sobretudo, pelo embate
estabelecido entre arte e política, entre a objetividade do discurso
político-panfletário e as subjetividades tramadas pelo “objeto de arte”. Das
poéticas do teatro físico às peripécias do Teatro Épico-Dialético, uma guerra
se faz no teatro branco ocidental. Tal crise só nos revela um campo de tensão
pouco resolvido, mas que, pelo menos, mostra a visão de mundo e de arte dos
lados que compõem essa trincheira. Inseridos num mundo altamente
espetacularizado, onde se coloca a singularidade do teatro? Que outros modos de
fazer teatro são possível para além da virtuose cênica empreendida pelo mundo
do sucesso? Nesse bololô pouco propositivo, a pergunta que fica é: como a
palavra pode ser utilizada no teatro contemporâneo como potência cênica? Seriam
os discursos de mundo, colocados em pauta na cena, matéria para composição
dramatúrgica?
A
dramaturgia de “Todo Camburão” – tecida a partir de histórias vividas pelos
artistas negros, por manifestos do Movimento Negro no mundo, por dados
jornalísticos e campanhas publicitárias, por documentos resgatados na
historiografia da escravidão ¬– coloca em paralelo um arsenal de discursos na
busca de tensionar esses lugares de fala e suas visões de mundo: dados que
compõem o real de um mundo tramado, nas suas vias mais intersubjetivas, por uma
lógica racista, escravagista e hipócrita. A busca que se empreende é a de
revisitar esses materiais para, em cena, desdobrar as conexões com o que antes
não se fazia tão aparente e questionar de onde partem tais contradições: elas
revelam perceptos do opressor ou manifestos do oprimido? Nesse sentido, optar
pelo uso da palavra, como bem aponta o texto de George, é assumir a potência da
articulação de discursos na construção de uma obra de arte. Acontece que, além
de buscar tensionar esses discursos, “Todo Camburão” desconfia sinuosamente da
veracidade de qualquer discurso de verdade e, como bem lembra Diogo ao falar da
potência do teatro dialético, assumimos que “é preciso duvidar do óbvio e
questionar o que parece estar naturalizado”. A potência de uma cena que busca
descolonizar o olhar e a escuta vai para além do que se deu historicamente como
realidade oficial – e nisso se inclui o que se intui precipitadamente de uma
poética periférica e negra – para reconhecer na oralidade a insurgência de uma
voz que opera por dissenso. Contra o documento oficial, emerge de forma
estratégica a voz de um povo que foi calado por séculos. É por isso mesmo que a
oralidade dos povos africanos tanto nos tem ensinado sobre a potência dos
relatos de vida, das histórias não contadas, das falas que não foram ouvidas.
Em
um processo onde os atores colocam em pauta sua própria experiência como negros
periféricos, suburbanos, é na palavra que se engenha a potência da articulação
de outros discursos, para além dos que se fazem manobrados pelos interesses de
um mundo completamente branco e higienizado. É por isso que se faz certeira uma
crítica que anuncia a diferença entre os atos da peça, reconhecendo que os
efeitos narrativos do primeiro e do segundo ato são colocados de lado quanto
adentramos ao terceiro. E isso se dá de modo estratégico. Ao apresentar Natanael, o
nosso anti-herói, personagem que percorre as ruas do cotidiano do nosso bairro,
das nossas famílias, das nossas vidas, não há como ceder facilmente ao fetiche
da representação. O que conta como potência performativa é exatamente a fala
que circunda e anuncia toda uma história que não circula na História oficial.
De oprimido a opressor, Natanael é qualquer um de nós, por isso a necessidade
de um rigor na palavra enunciada, no texto proferido, na voz abafada que
percorre essa trama. Na busca por complexificar esse arranjo, surge a denúncia
sobre o próprio discurso. Após apresentar uma tese e uma antítese, o espetáculo
se pergunta: É possível construir uma síntese? As informações do primeiro e
segundo ato são tecidas de modo objetivo e direcionado.
Há aí uma busca por levar ao espectador, de modo radical (por vezes didáticos), os
vetores que constituem Natanael como oprimido e como opressor. Tal efeito é
elaborado para desaguar no terceiro ato: aquele que se estabelece sem
informações claras ou narração direcionada. O desafio que fica para o
espectador se escancara: Como operar com as informações recebidas anteriormente de modo tão
direto quando adentramos em um tribunal composto
por sujeitos com interesses altamente obscuros? Num mundo atomizado por
discursos de verdade proferidos por todos os cantos, é possível descortinar a
complexidade dos discursos proferidos no primeiro e no segundo ato apenas com a
chancela de “culpado” e “inocente”? Não há síntese dos discursos em Todo
Camburão. E o espectador é convidado a partilhar desse debate, colocando em
jogo sua ação e visão de mundo. A urgência que surge ao final da cena é a
complexificação dessa trama e dos desdobramentos como campo de ação possível no
presente.
É
nesse momento que a dobra conceitual do espetáculo se faz a mostra. E se Todo
Camburão tem uma “missão”, talvez seja exatamente essa: denunciar o discurso de
verdade a que estamos entregues no mundo contemporâneo. No campo do real,
aquele que se tece a partir de nossas próprias histórias, assumimos uma
performance carregada de efeito narrativo. No campo da ficção da verdade (o
tribunal), a narração não tem mais efeito algum, o que se manifesta é apenas o simulacro. Num tribunal composto por diversos
personagens tramados por interesses ocultos, a farsa se apresenta como recurso de linguagem com efeitos performativos que denunciam o malogro, o falso, o
irreal que constitui tanto o sistema judiciário brasileiro, quanto um
pensamento precipitado que cai na superficialidade dos dados e não desconfia do
que antes lhe soava como natural. A espetacularização da verdade, o louvor ao
fake e à “pós-verdade”, tão presente nas tramas do nosso cotidiano, são levadas
à cena como denúncia visível. Tal alerta que se faz é sobre a fraude da síntese
e, para isso, todos os discursos saem da narração para assumir a força
performativa da retórica, do convencimento pelo grito, da guerra maniqueísta
estabelecida entre os jogos de poder de todos os atores que constituem a farsa
da justiça: “bastarda, vendida, injusta”. Junto com uma performance que se alia
às próprias realidades de vida dos atores, Todo Camburão denuncia justamente a
falência da representação e da institucionalidade.
Nesse
sentido, os efeitos preconizados pelo teatro épico-dialético brechtiano (não
esqueçamos da referência constante à “Exceção e a Regra”, de Brecht), além das
potências do Teatro-Jornal boaliano, o espetáculo assume a potência do mostrar,
operando pela potência dos lugares de fala, não para criar um território vazio
de empoderamento midiático, mas para apresentar narrativas que até então estiveram
escondidas nos escombros de uma história tramada por interesses obscuros. Tais
narrativas, é importante mencionar, não estão entregues por completo. Um mundo
construído por uma subjetividade branca que arroga já conhecer tudo pode perder facilmente de vista a possibilidade de se conectar a outros mundos. Acreditar que, na cena, tudo já foi entregue e que as conexões
possíveis que o espetador irá fazer já estão desenhadas é não fazer outra coisa
que subestimar a subjetividade poética e criativa da cena negra contemporânea.
Sim: desconfie de tudo o que lhe parece natural.
Além
dos objetos aparentes tramados no discurso, há diversas outras referências que
operam por permeabilidade, por vicejos poéticos que acessam o campo do
sensível. Seja a referência direta à mitologia dos Orixás, à Gira da Umbanda –
que começa pedindo permissão à Exu e finaliza saudando Oxalá – ou mesmo à
história de mártires do movimento negro, há conexões possíveis de serem rastreadas
para além do que é proferido no discurso falado, aquele que parece
possivelmente entregue de modo óbvio. A dimensão da experiência se dá a partir
de um mapa conectivo que se estabelece a partir do repertório de visões
de mundo do espectador. E nesse sentido, para sairmos do que já sondamos como conexão de expediente cênico, a
escuta é urgente, coisa que a epistemologia branca pouco tem
feito no mundo atual.
Por Altemar Di
Monteiro
Ator,
Diretor, Dramaturgista, coordenador do Nóis de Teatro. Doutorando em Arte da
Cena pela UFMG.
SERVIÇO
“Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro” segue em temporada pelo Programa
Petrobras Distribuidora de Cultura em São Luis e Teresina a partir de julho; e,
ainda esse ano, realizará temporada em Belo Horizonte e São Paulo.
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